Tuesday, March 20, 2007

PROCRIAÇÃO MÉDICA ASSISTIDA

A recente Assembleia Plenária da Conferência Episcopal Portuguesa que decorreu em Fátima trouxe, outra vez, para a ordem do dia, o mais que estafado problema da procriação médica assistida (P. M. A.).

Desta forma, a Conferência Episcopal da Igreja é frontalmente contra a “lei” da procriação médica assistida, acompanhando assim os movimentos de cristãos laicos que promoveram um abaixo-assinado, pelo qual desejariam obrigar a Assembleia da República a discutir um referendo sobre a lei da P. M. A.

Tal posição não é nova, já que o porta-voz da Conferência Episcopal, reunido em Fátima com dirigentes destes movimentos, afirmou que o texto da lei era “altamente ofensivo para a dignidade humana do embrião.”

Compreende-se perfeitamente que a dupla separação entre sexualidade e procriação e entre as componentes afectiva e biológica do lado procriativo inquietem a Igreja. É que o que está em questão muda os pressupostos que, ao longo da história do Homem, fizeram também parte da história inicial de cada um dos seres humanos.

Resta saber se os conhecimentos da Ciência Moderna, sejam eles quais sejam, não questionam sempre os restos e os resíduos históricos dos quais emergem, seja na microbiologia, na manipulação genética, na física de partículas, na procriação médica assistida, etc.

É que o caminho da ciência provém directamente do saber e não de qualquer objectivo moral que o saber científico deva supostamente servir.

Por isso, em última análise, todos os critérios éticos que proliferam actualmente, ao desmentirem os limites próprios da ciência, ou seja, a ética inerente à atitude científica, representam a maior das caricaturas. Ou seja, aquela que pretende dar “rosto humano” ao que constitui o fundamental do propósito humano, a saber, o aprofundamento do conhecimento sobre si e sobre o mundo.

A “sabedoria” eclesiástica, a propósito do progresso científico, apenas reproduz a sabedoria comum que pura e simplesmente teme que a manipulação da natureza pela ciência retire sentido à existência, como se a atitude científica não fosse ela mesma da ordem do sentido de conhecer, investigar, enfim, fazer progredir a própria natureza humana.

É por isso que, e ao contrário do que se limita a ser senso comum, acho profundamente insuficiente a aprovação pela Assembleia da República da lei sobre a procriação médica assistida. Em primeiro lugar porque, convém não esquecer, a entrada em vigor do decreto-lei n.º319/86, relativo à P. M. A., já tem 20 anos e continua por regulamentar. Tristes vinte anos de omissão científica, exponenciada na sociedade portuguesa por Cavaco Silva, Guterres, Durão Barroso e Santana Lopes.

É que, sem entrar em questões técnicas sobre o número de ovócitos por ciclo, sobre gâmetas e outros, o simples facto de que quer o PS quer o PSD restrinjam a aplicação da futura lei a casais, dá-nos a medida do atraso civilizacional do país. É que, para além das mulheres casadas ou em união de facto, existem outros humanos. As que estão sós por opção, as que se divorciaram, as que enviuvaram. Serão estas mulheres cidadãos de segunda categoria? É por isso que nestas matérias José Sócrates parece representar um mal menor face ao saber científico vigente. Triste opção esta da política à portuguesa. Uma vez mais a questão não é da “esquerda direita volver”, é da ordem da modernidade.

LINGUAGEM E POLÍTICA

A política assemelha-se frequentemente à evolução de linguagem nas sociedades ocidentais.

Não me referindo já aos fundamentos judaico-cristãos e atendo-me tão só à relação entre linguagem e Idade Média, um facto se torna relevante. Lendo os Doutores da Igreja (Sto. Agostinho, S. Tomás de Aquino, etc.) torna-se óbvio que a linguagem era tão só linguagem de uma outra linguagem. Esta, consistiria no livro anterior à fala humana, livro escrito por Deus e do qual o homem balbuciava a tradução.

Com o Renascimento, mas sobretudo com o Iluminismo, a linguagem abandona o campo da decifração de Deus para passar mais e mais a uma linguagem analítica e combinatória, a linguagem da razão, a racionalidade da linguagem. A leitura por exemplo de Kant faz-nos perceber como o subjectivo objectiva, ou seja, como o campo da fala se destina a criar relações com os objectos e com o mundo que rodeia o homem.

A psicanálise introduz uma terceira rotura entre o homem e a linguagem. Galileu retirou à Terra e portanto ao homem a condição de serem o centro do universo, já que não era mais o Sol que andava à volta da Terra, era a Terra que andava à volta do Sol. Darwin ao fazer do homem uma evolução dos primatas, retirou-lhe de vez a ilusão criacionista (o homem foi feito à imagem e semelhança de Deus), para o colocar num modelo evolucionista que nos “reduz” à condição de macacos falantes.

Porém Freud foi mais longe ao mostrar que nem de nós mesmos somos o centro. O que falamos é semelhante a um iceberg, 1/5 vê-se, 4/5 são invisíveis. Mas é aí, nos 4/5 escondidos que soçobram as almas dos homens pelo conflito, pela tristeza, pelo desencanto. Já não há portanto uma linguagem de um Eu, mas outro sim um Eu apropriado pela linguagem, sendo esta portanto o centro e o desvio do centro do sujeito.

Aqui, é a subjectividade que se objectiva onde, como atrás afirmamos, outrora era objectividade subjectivada.

A política encontra-se também presa aos mesmos paradigmas. Daqueles que na senda latente de um medievalismo escondido supõe que tudo está escrito, basta decifrar.

É a ilusão maior do leninismo e seus derivados, quando supõem uma escrita determinista do clã à tribo, da tribo ao feudalismo, deste ao capitalismo, depois ao socialismo e finalmente a terra prometida, o comunismo.

Por baixo de uma retórica pseudo-científica encontramos Sto. Agostinho de braço dado com Galileu, ambos crentes no determinismo, ambos assombrados por um destino que só a linguagem (retórica ou científica) permitiria decifrar. Foi também essa a ilusão patológica do corporativismo salazarista ou da Assembleia Constituinte que “pariu” um país em direcção a uma sociedade sem classes.

Mas face a esta linguagem da realização é cada vez mais necessário opor uma linguagem da escuta. Escuta do cidadão, do sujeito individual, das aspirações e dos conflitos da sociedade civil. Esta forma de fazer política com humildade, só é possível se o Eu político não se pensar dono de uma linguagem, mas atravessado por uma linguagem. De certa forma, o Eu Cavaco, Presidente e o Eu Sócrates, Primeiro-Ministro, parecem fazer um esforço por ir por aí.

O futuro nos mostrará se a persistência nesta dimensão, poderá continuar a ser viável.

O NATAL DO NOSSO DESCONTENTAMENTO!

Não sou, não fui e, provavelmente, nunca serei crente. Uma racionalidade feroz inibe-me de qualquer outra coisa que não seja esta posição de base que nem sequer roça o agnosticismo.

Estou, por isso, completamente à vontade para escrever sobre as paródias anti-natalícias que pareceram invadir a Europa neste Natal de 2006. Tais factos foram particularmente evidentes em Espanha e em Inglaterra.

Alguns exemplos, pelo seu aparente ridículo, dão para pensar. Em Mijas (Málaga), a directora de uma escola pública colocou no lixo um presépio feito por alunos da disciplina de religião já que, segundo ela, numa escola pública de um país laico não deveriam ser permitidos símbolos religiosos. Também em Espanha, em Saragoça, foi decidido numa escola não haver festa de Natal para não correr o risco de ofender as crianças não cristãs. Em Inglaterra, várias empresas querem branquear as celebrações de Natal, para além de que algumas autarquias ensaiaram retirar as referências cristãs ao Natal. Pasme-se! No Canadá, tal problema, há cerca de seis anos, chegou a ser abordado no parlamento.

Na Alemanha, autoridades municipais objectaram à exibição do filme “O nascimento de Cristo”, considerando que este poderia ser motivo de ofensa para não cristãos.

Tal como Jeff Randall, jornalista britânico agnóstico, acho totalmente absurdo transformar o cristianismo em crime. Tal como aquele jornalista, só posso entender estas práticas como da ordem da auto-humilhação.

Porém, e independentemente dos múltiplos protestos que tais práticas suscitaram, estas são evidentemente da ordem do sintoma, neste caso o da supressão, na letra, na palavra e na acção, do que constitui a festa por excelência da família nos povos europeus.

Só um puro sentimento de cobardia (física e intelectual) pode justificar o início de uma pseudo-descristianização que remete tão-somente para aspectos arcaicos do pensamento, sobretudo os ligados aos medos e ansiedades primitivas.

O familiar, o conhecido, o espaço-tempo onde envolvemos calorosamente as nossas festividades, corre assim o risco de se transformar no estranho, no lúgubre, no ameaçador.

A pergunta é de uma dimensão inquietante. Onde nos levará o multiculturalismo, literalmente beato que, par e passo, mina as fundamentações simbólicas de uma cultura.

A resposta a esta questão é mais e mais da ordem do desmentido. Desmentido da nossa realidade, desmentido da nossa História, desmentido dos nossos símbolos.

Mil vezes Saladino expulsando os cruzados de Jerusalém. Mil vezes a confrontação clara, a única capaz de conduzir ao diálogo entre diferentes formas de olhar a Deus.

O que não é suportável para um não crente como eu é a estupidez politicamente correcta que apenas conduz inexoravelmente a nossa civilização à sua auto-castração, em nome de uma alteridade radical, mortífera da nossa identidade.

ABECEDÁRIO 2006 (II)

Neste artigo retomamos a metodologia do abecedário 2006 (I), pelo que dispensamos a sua descrição. Tínhamos ficado na letra “I”.

I2Islamismo político radical. Triste, mais triste não há. As manifestações a propósito das caricaturas do Profeta ou as que sucederam ao discurso do Papa, em Ratisbona, revelam a mão sombria, feudal, primária, violenta, e acrítica em que se transformou uma boa parte do mundo muçulmano. Se não levarmos a sério o que se está a passar, pagaremos em breve um preço pesado pela cobardia encapotada de muitos dos nossos dirigentes políticos.

JJesus. O Natal de 2006 foi marcado, em vários pontos da Europa, pela interdição dos sinais cristãos que sinalizam o seu nascimento. Pior é difícil. Eu, que não sou crente, em 2007, vou ajudar a fazer um presépio.

KKerry, John. A esperança de uma mudança nos Estados Unidos que, na sua derrota, abriu as portas ao sintoma Bush II. Ou seja, a uma política simplista, neo-isolacionista, com laivos de um império em decadência. Se Kerry tivesse ganho, não teríamos assistido ao lamentável espectáculo que foi a política norte-americana em 2006.

LLíbano – A aparente “derrota” do exército israelita ficou a dever-se em exclusivo ao descarado apoio que o Irão e a Síria deram ao Hessbolah. A política mendicante ao alcance das bolsas terroristas, que compraram com um punhado de dólares as almas libanesas. Horrível de se ver, intragável para o pensar.

MMinorias. No lugar da integração das minorias étnicas ou religiosas, assistimos, na Europa, à genuflexão vergonhosa da nossa identidade cultural.

NNinguém. O Sr. Zé-ninguém continua a ser objecto de cobiça para a minoridade política, enquanto conta ao milímetro os miseráveis euros com que tem de viver.

OO.P.A.. O espectáculo OPA parece não ter fim. O braço de ferro entre Granadeiro e Belmiro de Azevedo continuará seguramente em 2007.

PPortugal. País pequeno, maltratado, sem crescimento económico visível e onde a esperança estiola. Esperamos, em todo o caso, que Sócrates melhore a “coisa”.

QQuando. Quando vamos sair da crise?

RRatzinger. O “conservador” consultou os bispos sobre o celibato sacerdotal, citou Eros na Encíclica, admitiu o uso de preservativos e apoiou a entrada da Turquia na União Europeia. Um professor universitário fez mais e mais depressa que o seu antecessor, Papa risonho, mas com pouco para dizer.

S - Steiner – A sua escrita continua a surpreender-nos. Urge adquirir a segunda edição das entrevistas, publicadas pela Fenda em 2006.

TTurquia. A sua adesão à União Europeia, uma vez mais adiada, resolveria o problema da democracia na Europa, alienado no eixo económico Paris-Berlim. 80 Milhões de novos europeus musculariam o eixo democrático da União Europeia.

UUnião Europeia. O crescimento do espaço geopolítico da União Europeia é o maior desmentido da sua pseudo-fraqueza.

VVinho. Os vinhos portugueses, em 2006, melhoraram substancialmente.

XXanana Gusmão. O presidente timorense, para além de ser casado com uma australiana, deixa que a senhora mande no país. O curioso é que julga que ninguém sabe.

ZZapatero. O primeiro-ministro espanhol não tem medo da igreja nem dos restos do franquismo.

ABECEDÁRIO 2006 ( I )

O ano de 2006 pode ser apresentado em várias versões. Escolhemos a “fórmula” de A a Z como sistemática, simples e concisa. Em cada letra escolhemos as pessoas, os factos ou as personagens quanto a nós mais significativas.

AApito Dourado. Um dos mais mediáticos processos judiciais, no qual se revelou o que há de mais patético, tosco e provinciano em Portugal.

B1Bagdad. A cidade mais incendiada, aterrorizada e traumatizada em 2006. Milhares de mortos incluindo soldados americanos. O desaparecimento da mão ditatorial de Saddam Hussein veio a revelar o extremismo árabe na sua dupla condição sunita e xiita. O terror ao alcance de todos, o “Viva la muerte!”.

B2 Blair. Adorei a derrota de Tony Blair na questão dos bilhetes de identidade. Os ingleses tal como, aliás, os norte-americanos, continuam a rejeitar esse emplastro calunioso para a democracia. Em Portugal, espera-se o proto – fascismo do novo cartão de identificação, no qual só falta vir o número da cueca. Não me apetece usá-lo, já que por ele me sinto insultado.

CCavaco Silva. O novo Presidente da República tem surpreendido tudo e todos. A forma como interpreta o lugar presidencial, a convivialidade com o governo, as posturas públicas a favor da inclusão social, etc. fazem de Cavaco Silva um Presidente que tem conquistado os críticos mais empedernidos, nos quais eu me incluo.

DDurão Barroso. O Presidente da Comissão Europeia tem-se mostrado demasiado discreto, politicamente correcto por excesso, dele se podendo dizer que de Barroso “nada de novo”. Refugiado em Bruxelas não se redimiu da medíocre governação como primeiro-ministro de Portugal. Esperamos melhorias em 2007.

E“Expresso”. O jornal dirigido por Henrique Monteiro soube sobreviver ao seu recém oponente “O Sol”, reinventando, inclusive, o formato de jornal e algum arrojo jornalístico. Não perdendo a sua identidade, o “Expresso” está aí para ficar em 2007.

F Futebol. A notável prestação da selecção nacional no Mundial de 2006 tornou-se motivo de orgulho para os portugueses. Lamento, em todo o caso, e sabendo-me em minoria, as ridículas declarações de Scolari, as quais misturam, num pot pourri delicioso, Nossa Senhora de Caravaggio, crendice vagabunda mais pretensão popular e populista. Esta personagem, gaúcha de origem, aquando das suas declarações públicas, não deveria ultrapassar a picanha ou o rodízio à brasileira.

G1Gore. Al Gore surpreendeu tudo e todos com a sua explosiva escrita sobre o ambiente. Eu, que sobre os verdes apenas temo conseguirem levar a couve portuguesa a primeiro-ministro, nesta matéria tenho de tirar o chapéu ao ex-vice presidente norte-americano. Pôr o dedo na ferida implica coragem, lucidez e capacidade para suportar as inevitáveis controvérsias suscitadas pelas suas declarações.

G2Gato fedorento. O mais notável e criativo programa de televisão em 2006. Um tónico para o baixo nível do espaço televisivo português.

HHolanda. O único país com um verdadeiro partido liberal. As causas “fracturantes” o discurso do passadista e decrépito bloco de esquerda (hamburguer com sabor maoísta, temperado com molho Trotsky) pertencem todas elas ao partido liberal holandês. Da eutanásia à liberalização das drogas leves, ao aborto, à união entre homossexuais, etc. Uma vez mais se vê o provincianismo nacional que faz destas questões, questões de esquerda. Citando Jorge Palma “deixa-me rir…”.

I1Irão. O insuportável como regímen de estado. A mentira histórica levada ao seu ponto mais caricato, contida na afirmação de que o holocausto nunca existiu tratando-se, tão só, de uma “invenção” judia. Nem Hitler se atreveria a tanto, já que lhe chamou “solução final”. Final é também o presidente iraniano que pretende omnipotentemente ameaçar o mundo à custa do urânio tão empobrecido como as funções cognitivas do cavalheiro. A república islâmica xiita, “xia” de desgosto face à desertificação de todo o pensamento que não seja o oficial.

Tuesday, March 13, 2007

Violação

Os comentários do Sheik Taj Din al – Hilali’s, que mereceram pouquíssimas referências na imprensa portuguesa, surpreenderam os australianos. O sheik, residente em Sidney, afirmou a 26 de Outubro que “as mulheres muçulmanas são culpadas da violação, se não utilizarem o véu que lhes cobre a cabeça.”

Ao que parece, desta vez, o sheik foi recriminado pelo próprio clérigo muçulmano. A associação de mesquitas de Sidney suspendeu por três meses o sheik Taj Din al – Hilali’s.

Para além da irrisória medida suspensiva (três meses), considerada pelo primeiro – ministro australiano claramente insuficiente, não nos podemos esquecer que Taj Din al – Hilali’s, já em Dezembro de 2005, tinha proferido idêntico discurso. Perante centenas de fiéis muçulmanos, afirmou que as vítimas de violação não têm direito a dizer não, se não usavam véu.

Os comentários religiosos e ultrajantes do sheik Hilali’s são uma afronta absoluta a toda a sociedade civilizada. Violar mulheres em função da forma como se vestem é da ordem do insuportável.

Aliás, se o conteúdo manifesto se dirige ao feminino, através das afirmações caricatas, tais como (“para que uma mulher seja absolvida da culpa da violação, deverá ter mostrado anteriormente um comportamento muçulmano adequado”), já o conteúdo latente das suas afirmações deverá ser objecto de observação. Ao convocar o despertar no homem de instintos animais, o sheik referido insulta duplamente o humano e o animal, já que não conheço animal algum que viole gratuitamente outros animais. Ou seja, a condição masculina no homem está abaixo da observável na natureza.

Mas o sheik Hilali’s não está sozinho. Em 2005, o sheik libanês Faiz Mohammed tinha afirmado que as mulheres muçulmanas vítimas de violação não podiam queixar-se senão delas mesmas. Mulheres que não usam vestes adequadas são um convite à violação masculina.

Poucos meses mais tarde, em Copenhaga, o mufti Shahid Mehdi se tinha adiantado no discurso, considerando que as mulheres sem véu convidam à violação. Mais, o sheik egípcio al – Quradawi não só acusou a mulher muçulmana que não use véu de convite à violação, como foi mais longe. No seu dizer, estas mulheres, apesar de violadas, deveriam ser punidas pela “imodéstia do seu vestuário”.

O que encontramos aqui retratado é tão somente um formulário medieval caricato, com base num discurso oriundo do século VII. Neste sentido, os discursos de al – Hilali’s são quase tão perigosos como as bombas terroristas num século globalizado e em que as palavras são expostas através dos media.

Não admira, pois, que muitos australianos reivindiquem a deportação imediata do sheik.

O multiculturalismo beato não pode ignorar que os muçulmanos, a começar pela sua liderança, devem aceitar os nossos valores, porque escolheram viver na Austrália, na Europa, etc.

Temo que, a menos que olhemos direito para os factos, temos de vir a lamentar no futuro a experiência idealística da aceitação “liberal” de formas religiosas nas antípodas da nossa concepção do mundo.

A “Serpente” da Bíblia ressuscita pela voz de um Islão caricato.

Thursday, November 09, 2006

DEMOCRACIA SEM RISCO

O actual estado de coisas em matéria securitária questiona, queiramos ou não, a Europa das liberdades, a Europa da Revolução Francesa.

Dir-se-á que, durante a guerra fria, dada a sua própria natureza, os estados, nomeadamente a ex – URSS e os E.U.A. evoluíram de tal forma que o chamado interesse nacional se confundiu com potência militar. Mas aí era a segurança externa que interessava ao mundo dividido pela cortina de ferro.

Progressivamente, o conceito de segurança interna foi ocupando mais e mais os estados, sobretudo via problemas cada vez mais inter-conectados. Refiro-me, por exemplo, à emigração, ao terrorismo e ao tráfico de drogas.

Porém, neste contexto crescente securitário, o 11 de Setembro acelerou a construção de programas de controlo e de vigilância generalizados.

Alguns exemplos pós – 11 de Setembro são, de facto, inquietantes:

- a 25 de Outubro de 2001, os E.U.A. adoptaram o Patriot Act;

- no verão de 2005, a polícia italiana foi autorizada a escutar pessoas durante mais de três meses, desde que houvesse suspeita de ligação a práticas terroristas;

- em Janeiro de 2006, na Baviera, foram autorizadas escutas e controlos de e-mails, ainda que a polícia não dispusesse de nenhuma suspeita concreta;

- em Março de 2006, uma directiva europeia obriga os estados membros a conservar, até dois anos, informações sobre comunicações telefónicas e Internet, nos respectivos países;

- em Outubro de 2006, assinou-se um acordo da U.E. com os E.U.A., de forma a transmitir os dados pessoais dos passageiros aéreos;

- em Novembro de 2006, 4,2 milhões de câmaras de vigilância estão em actividade no Reino Unido, ou seja, uma câmara por catorze habitantes.

Esta omnipresença e banalização do controlo securitário, de que o “Le Monde” de 6 de Novembro dá conta, parece, no entanto, mais e mais normalizado, acompanhado de mudanças cognitivas nas nossas sociedades. De facto, a opinião pública não reage e, pelo contrário, pode até exigir a auto-proclamação da segurança.

Na Bélgica, por exemplo, os habitantes dos bairros residenciais reclamam o direito de interrogar alguém que achem suspeito ou de chamar consequentemente a polícia. Ou seja, exigimos um crescendo de segurança e simultaneamente reivindicamos uma profunda ligação às nossas liberdades.

Não se trata mais de uma sociedade de controlo, mas de auto-controlo, em que a democracia fica parodiada pelas alternâncias democráticas eleitorais.

O drama está na vitória do terrorismo. Hoje, o Estado pode desqualificar os direitos dos cidadãos e continuar a ser considerado democrático. A redução progressiva e consentida das liberdades individuais, em nome da luta anti-terrorista, apenas cria a fantasia de uma democracia sem risco que tem como pano de fundo a Al-Quaeda e os seus seguidores.

O SUCESSO DA ILITERACIA


Num mundo em que a iliteracia se travestiu de alfabetização, vale a pena reflectir sobre as consequências que tal facto produz a nível planetário. Sobretudo aqui, na Europa, em que os teatros tentam desesperadamente sobreviver, as companhias de bailado são encerradas, enquanto os jovens ouvem o seu próprio vazio, disfarçado de sonoridades menores.

“Esta” Europa, que produziu Camões, Pessoa, Goethe, Dante, Elliot, Freud e tantos outros, vê-se hoje a braços com o esvaziamento identitário resultante da homogeneização de culturas, de saberes e de pseudo-saberes que invadem o Velho Continente.

Refiro-me em particular à Europa, posto que ela é o berço civilizacional que viabilizou outras culturas, outras matrizes colectivas, sobretudo no Novo Mundo.

Aqui, como lá, assistimos, de um lado, à impressionante expansão do que designaríamos por alta ciência e também, por que não dizê-lo, da alta cultura.

Por outro lado, verificamos a proliferação da chamada literatura light, que vende às dezenas de milhar, e à impostura que se propõe a explicar os mistérios do mundo, das culturas à religião, da astrologia, claramente correspondendo à manutenção de um nível pré-científico no século XXI. Mesmo sem um planeta (Plutão), a astrologia enche gabinetes, dá origem a horóscopos, etc.

É neste mundo que a obra de Dan Brown campeia e faz sucesso. Segundo a sua editora em Portugal, a Bertrand, um em cada dez portugueses já leu o tristemente famoso escritor norte-americano. Ou seja, foram utilizadas 777 toneladas de papel que juntas têm 91 vezes o comprimento da Torre Eiffel, além de alinhados poderem cobrir a distância que separa Lisboa do Algarve. E, no entanto, a obra de Dan Brown não passa de pastiche intelectual, cozinhada em pseudo-saberes históricos, em relações fantásticas, por sua vez engendrando enredos de baixo nível.

O pior, para além da atitude acrítica que move a imensa maioria dos leitores de Brown, é a impressionante divulgação a nível planetário da sua obra. Por exemplo, o Código da Vinci já vendeu mais de 40 milhões de exemplares, dos quais cerca de meio milhão no nosso país. Ombreando com as telenovelas de segunda e o número incomensurável de programas sobre futebol, ultrajantes pela fala vazia produzida, a obra de Dan Brown é, no entanto, mais perigosa.

A sua pretensão explicativa não só põe em questão os fundamentos mítico-simbólicos da nossa cultura, como fornece pseudo-explicações ao alcance de todos.

Talvez um dia não precise de voltar a escrever sobre isto, embora saiba que esse dia, se vier, muito tardará.

VIEIRA E MATEUS

1 – Existem pessoas que nunca estão satisfeitas. Apesar da presença notável da selecção nacional no último mundial, ou quiçá do triunfo que representa para o nosso futebol a presença de três equipas nacionais (Porto, Sporting e Benfica) no mais prestigiado campeonato de futebol. Imaginem que exigem transparência e surpreendem-se com as escutas telefónicas feitas a Luís Filipe Vieira e a outros dirigentes desportivos. Perguntam-se, conforme a pertença clubística, será isto real, será isto possível?

Independentemente de ser visceralmente contra o uso e abuso de escutas telefónicas, revolto-me contra a ideia de que tais factos se passaram realmente. Se um homem profere, via telefónica, palavras de amor à sua amada, o que ouve ela realmente? Não a voz ardente do seu amado, embora ela pense que assim seja. Mas tão somente uma reconstituição, através do telefone, aos seus ouvidos de uma vibração do ar. Todo o telefonema é, pois, uma simulação. Por isso, as escutas telefónicas a Filipe Vieira são apenas simulacros e nada mais.

Mas, ainda que Vieira ou Valentim Loureiro estivessem face a face, a apenas algumas dezenas de centímetros de distância, o que ouviriam eles? Não foram os seus ouvidos que ouviram as palavras. O que um ouvido faz é registar as mudanças de pressão pela acção do estribo e dos ossos da bigorna. Enfim, simulacro outra vez.

Sou, pois, firmemente contra acusações que se baseiem tão-somente em realidades virtuais. O futebol português não merece isto, nós somos mesmo transparentes e cheios de fair play. Aliás, se o leitor bebericar um café, tomar banho no mar ou apreciar o gosto de um martini, tem de se perguntar, isto é real?

2 – O caso Mateus divide os portugueses, já que Fiúza é mesmo fiúza e não desiste.

Recomendaríamos a ambas as partes a leitura do evangelho homónimo (o Evangelho segundo S. Mateus). “Por que olhas o cisco no olho do teu irmão e não vês a trave no teu? Como ousas dizer ao teu irmão, deixa-me tirar o cisco do teu olho, quando tu próprio tens uma trave no teu. Hipócrita, retira primeiro a trave do teu olho e só então cuidarás de retirar o cisco do olho do teu irmão.”.

Até para a semana.

LOGOS


Gostei particularmente da intervenção do Presidente da Comissão Europeia, José Manuel Durão Barroso, a propósito da conferência universitária de Bento XVI, ou melhor dizendo, do Prof. Ratzinger, agora Papa.

A defesa clara da liberdade de expressão é crucial no momento preciso em que a essência da democracia (a defesa de liberdades, direitos e garantias) está mais e mais comprometida pelos processos securitários, gerados pelas sociedades ocidentais como resposta ao terrorismo internacional, nomeadamente islâmico.

Gostei também das declarações do chefe do governo espanhol, Rodriguez Zapatero, sobre as palavras do Papa. Tanto mais quanto Zapatero “não vai à missa” com a Igreja Católica de Espanha e nem sequer foi à missa proferida pelo Papa no território hispânico. “Este” primeiro-ministro, resolutamente laico, não deixou de afirmar “o seu apoio e plena compreensão ao Papa”. A 21 de Setembro, em Madrid, Zapatero declarou que “o Papa foi muito claro na explicação da sua intervenção” e que em momento algum as palavras papais puseram em causa a fé islâmica e os seus crentes.

De facto, o que Bento XVI nos propôs foi uma relação entre os filhos “muitas vezes desiludidos”, para parafrasear Steiner, de Atenas e Jerusalém. Ou seja, e por outras palavras, uma relação privilegiada entre o pensamento bíblico e o logos helénico. Esta convocação da Razão, que já lhe valeu ameaças dos radicais islâmicos contra a sua própria vida, é a única compatível com a Europa saída do Iluminismo. Face àquela, nada, nem mesmo nada, poderá virar-se contra a razão e a racionalidade inerentes aos nossos sistemas sociais.

O Comissário europeu para a Segurança, Liberdade e Justiça, Franco Frattini, afirmou (“apelo aos estados membros para levarem a sério as ameaças contra o Papa”). Frattini afirmou ainda que a Europa se encontra sob duas ameaças terroristas. Uma, dirigida aos Estados e aos seus cidadãos e outra, dirigida ao Papa e ao Vaticano, algo confirmado, aliás, por várias declarações oriundas de grupos extremistas islâmicos, convocando a intenção de atacar o território do Vaticano e o próprio Bento XVI.

Mas será que uma pressão exógena à nossa cultura nos poderá fazer vacilar? Ou, pelo contrário, devemos ater-nos às palavras de Kant no prefácio à 1ª edição da “Crítica da Razão Pura” (1781)

Afirmou o famoso filósofo (“A nossa época é a época da crítica, à qual tudo tem de se submeter. A religião pela sua santidade e a legislação, pela sua majestade, querem igualmente subtrair-se a ela. Mas então suscitam contra elas justificadas suspeitas e não podem aspirar ao sincero respeito, que a razão só concede a quem pode sustentar o seu livre e público exame.”).

NO PAÍS DO VENERANDO

Num país quase sempre previsível, saúda-se a imprevisibilidade cardinalícia a propósito do aborto.

O que surpreendeu Portugal (incluindo o Bloco de Esquerda) foi a forma e o modo como o Cardeal D. José Policarpo se pronunciou, que não fundamentalmente o conteúdo das suas afirmações.

Estas, se bem que longe do dislate que se propagou na Igreja Católica nacional, aquando do último referendo sobre o aborto, não trouxeram nada de novo, a não ser um quase propósito de neutralidade eclesiástica sobre a interrupção voluntária da gravidez.

D. José Policarpo afastou-se assim do discurso neo-delirante produzido por uma parte da igreja aquando do processo referendário. Só isso, no aqui e agora nacional, é já da ordem do surpreendente.

Já a oposição de alguns movimentos ditos “pró-vida”, apesar da retórica argumentativa, apenas reproduzem, num país à beira-mal plantado, o tom de capelinha, ainda que retocado de um pseudo-saber, soi-disant, rigoroso.

Pior, muito pior, é a colagem do centro-direita ao discurso acima proposto. A direita portuguesa não fez ainda o luto pelo imaginário salazarista, evocação sombria de procissões e de um Estado calcorreado por estradas minúsculas e humildes, unindo aldeias caiadas pelas côdeas de pão que alimentavam “o bom povo português”.

A direita portuguesa é contra o aborto, como é contra a união de homossexuais ou a liberalização das drogas, ou ainda, contra a eutanásia. Desta forma, entrega à esquerda, se não mesmo à extrema esquerda, o que se designa por causas fracturantes, nomeação tosca para a modernidade, hoje.

Se assim não fosse, como entenderíamos o Partido Liberal Holandês, claramente conotado com o centro-direita no país das tulipas e onde pugnou e conseguiu o enquadramento legal para aquelas práticas ditas “escandalosas”. Seja a eutanásia, o aborto, a união de homossexuais ou a liberalização do consumo de drogas leves.

O problema, pois, não está em ser de esquerda ou de direita, mas no olhar que se lança sobre a contemporaneidade.

UNIVERSIDADE

É sempre bom saber o que as coisas querem dizer. Ajuda-nos a reflectir sobre a intencionalidade das palavras que as designam. Por exemplo, “Universidade”; reza o dicionário Houaiss (2003) que aquela diz respeito, em primeiro lugar, a uma qualidade ou condição. Esta é da ordem do universal. Assim sendo, a universidade é a instituição que nos abre à complexidade do que nos rodeia, ou seja, às leituras do Universo.

Por outro lado, uma universidade é uma instituição de ensino e pesquisa, constituída por um conjunto de faculdades e escolas destinadas a promover a formação profissional e científica de pessoal de nível superior e realizar pesquisa teórica e prática nas principais áreas do saber humanístico, tecnológico e artístico e a divulgação dos seus resultados à comunidade científica mais ampla (Houaiss 2003).

“Universitas” é o étimo de universidade e reenvia-nos a universalidade, totalidade.

Serve esta incursão pelo dicionário para enquadrar as recentes práticas de estudantes universitários, as quais, para além do velho e estafado discurso sobre propinas, etc., se fazem agora também em nome de uma exigência de emprego para os licenciados pelas universidades portuguesas.

Nem universidade, nem universitário, ou seja, aquele que pertence à universidade (professor ou discente) trazem consigo uma reivindicação estranha ao espírito ou à qualidade universitária, isto é, o seu universitarismo.

Perguntar-se-á, então, o que move alguns estudantes universitários, exclusivamente oriundos das instituições de ensino superior públicas, para, despudoradamente, exigirem às universidades aquilo que a elas não compete. Esta pura demagogia, este neo-populismo que campeia em afirmações destituídas de qualquer espírito crítico, parecem, no entanto, acolher alguma recepção pública.

E, no entanto, mesmo que o problema fosse enquadrável na formação superior, única responsabilidade que a instituição universitária tem para com os seus discentes, uma evidência joga contra o patuá alarmista sobre a empregabilidade dos licenciados.

Veja-se a este propósito as declarações de Francisco Madelino, presidente do I.E.F.P.. Naquelas, é visível não só a necessidade de uma readaptação dos jovens licenciados ao mercado de emprego, como também números esclarecedores. Efectivamente, os que dispõem de maiores habilitações são os que têm mais hipóteses de encontrar emprego. Aos 14 meses, média geral do tempo de desemprego, contrapõem-se os 8 meses que os licenciados demoram a encontrar trabalho. Aliás, o nível de empregabilidade naqueles que possuem instrução superior aumentou 3,7%, número que nos obriga a reflectir. Por isso, Madelino é incisivo nas suas declarações (“Não há licenciados em excesso no país”).

Então, não só as manifestações carecem de finalidade nos intra-muros das universidades, como se revelam incongruentes com a realidade.

Uma universidade é um lugar onde se pesquisa, ensina e se aprende. Não é, nem nunca poderá ser, uma bolsa de emprego para os que nela estudaram. O resto resulta de uma pseudo-ingenuidade que só serve para criar ruído no universo da razão.

Tuesday, October 10, 2006

As Peúgas de Salazar

AS PEÚGAS DE SALAZAR


Não sei, nem tenho de saber, se existe um museu Estaline ou uma Fundação Franco. Suspeito que não, embora esta suspeita seja irrelevante para a questão em apreço. Refiro-me à construção de um museu António de Oliveira Salazar, por sugestão do Presidente da Câmara Municipal de Santa Comba Dão, João Lourenço.

Tanto quanto nos foi possível perceber, na antiga adega da casa do ditador será construído um auditório, e numa outra, também pertencente ao ex-perfeito de um colégio interno e presidente do Conselho de Ministros de um Estado rotundamente piroso, espelho da sua personalidade, será construído o Centro de Estudos sobre o Estado Novo. Apesar da localização suspeita, esta seria a única parte do projecto compreensível. Mas então, não seria nunca ali que aquele devia ser localizado.

Quanto à residência propriamente dita, ela será reconstituída na casinha de pedra portuguesa onde Salazar nasceu e onde serão expostos a público objectos que suscitam profunda reflexão colectiva. A cama, lugar onde Oliveira sonhou Portugal; a secretária, que imaginamos espelho rigoroso da austeridade da personagem; móveis e ainda um carro velho pertencente a um tio e utilizado por Salazar quando ia a Santa Comba Dão. Enfim, reflexos da vida cosmopolita e da personalidade aberta daquele que deu a Portugal um decisivo impulso para a identidade nacional expressa no “orgulhosamente sós”.

Haverá ainda um restaurante, naturalmente abundante em azeitonas, em homenagem ao nome de família Oliveira.

Tal facto, é tanto mais interessante quanto, na António Maria Cardoso, no prédio onde esteve sediada a ex – PIDE/DGS, braço policial do ditador, vai ser construído, ao que parece, um prédio de luxo. No qual, para ao menos haver uma placazinha testemunhando o sombrio lugar da memória sob centenas de portugueses que aí foram detidos e torturados se tornou necessário um abaixo-assinado que orgulhosamente subscrevi.

Tal como Eduardo Lourenço, penso que em Portugal o fascismo nunca existiu. Deixo esse analfabeto epíteto para aqueles que não sabem o que foi o fascismo em Itália, a sua teoria e a sua prática. Por outras palavras, entrego-o de bom grado a uma certa esquerda analfabetizada, cuja ignorância maior se centrou exactamente aí.

Salazar não era fascista. Era um provinciano que acedeu à cátedra na Universidade de Coimbra e, por aí, ao governo de um País, que todos sabemos estar desgovernado. Mas essa condição não é desculpa nem justificação para a permanência, durante dezenas de anos, de uma personagem tacanha e desconfiada à frente do governo de Portugal.

Solicitava, pois, aos proponentes do projecto que, além da cama, secretária, móveis e carrinho, expusessem também as peúgas do ditador.

Não solicito mais por decoro, mas por favor, se o projecto for para a frente, não se esqueçam das peúgas!...

Tuesday, September 19, 2006

Bento XVI




O discurso de Bento XVI na Universidade de Ratisbona provocou rapidamente protestos no mundo islâmico.

Vale a pena neste contexto ler o que o Papa efectivamente disse e quais as reacções à sua palavra. Referindo-se ao imperador bizantino Manuel II Paleólogo, Bento XVI, citando-o, afirmou (“Na sétima controvérsia, o imperador aborda o tema da jihad (guerra santa”.). (…) Ele diz (“mostra-me então o que Maomé trouxe de novo. Não encontrarás senão coisas demoníacas e desumanas, tal como o mandamento de defender pela espada a fé que ele pregava.”).

“O imperador explicou depois porque é que é absurdo defender a fé pela violência. Deus, disse ele, não gosta de sangue, e agir de modo irracional é contrário à natureza de Deus”. O editor Theodor Khoury, de que Bento XVI se outorgou, observa (“para o imperador esta última posição é evidente. Ao contrário, para a doutrina muçulmana Deus é absolutamente transcendente. A sua vontade não está ligada a nenhuma das nossas categorias, nem mesmo à razão”.). “Será a convicção de que agir racionalmente é contrário à natureza de Deus ou será ela sempre intrinsecamente verdadeira? Creio que aqui podemos ver a profunda harmonia entre o que é grego, no melhor sentido da palavra, e o entendimento bíblico da fé em Deus”.

Como é visível nestas citações que Bento XVI referiu explicitamente como sendo puras citações, o que está em questão é a relação entre a razão e a ideia de Deus. Creio que o Papa saberia perfeitamente as reacções ao seu discurso, embora este, sendo politicamente incorrecto, nos permita perceber o que se passou a seguir. No Cairo, na Turquia, em Gaza, etc. Ou mesmo na Organização da Conferência Islâmica (a maior associação de muçulmanos), que considerou as citações usadas pelo Papa como “um assassínio de carácter do profeta Maomé”.

Até a comunidade islâmica de Lisboa ficou triste e surpreendida. (“Consideramos que dos muitos diálogos havidos ao longo dos séculos entre cristãos e muçulmanos, o Papa foi decerto muito infeliz na sua escolha, sobretudo nos tempos tão conturbados em que vivemos.”).

Opinião diferente é aquela que foi expressa por Magdi Allan, intelectual de origem egípcia e vice-director do Corrire della Sera, que considerou a reacção muçulmana como “desoladora e preocupante.”, revelando que o Islão foi transformado de religião em pura ideologia.

Saudamos a coragem do Papa e assinamos por baixo a opinião de Allan. A liberdade de pensamento não pode ser asfixiada seja por quem seja, a menos que deixemos de ser herdeiros dos gregos e da cultura judaico-cristã, “temperadas” pela lição do Iluminismo.



Tuesday, December 20, 2005

O (I)RISÓRIO DE SANTORINI

Perdoar-me-á o leitor convocar para a cena politica um pequeno saber que só na aparência é anatómico.

Para vossa informação, aos que agora me lêem, Santorini descreveu com o nome de Risorius novus, um pequeno músculo, em geral extremamente fino, que está situado de ambos os lados da face. Ficou mais tarde conhecido em Anatomia Humana como risório de Santorini, em homenagem àquele que o descreveu.

O risório (de riso é claro) origina-se no tecido celular que cobre as parótidas e, às vezes, estende-se até ao esternocleidomastoideo. Aquele músculo do famoso filme do Vasco Santana, quando três professores deliciosamente caricaturizados se olham atónicos, quando o “Vasquinho” responde e bem. Dizem em uníssono, num tom que nos faz rir a todos (“ele até sabe o que é o esternocleidomastoideo”). E vai daí deram-lhe nota máxima e as tias da província ficaram deliciadas, arrependidas. Vasco Santana, que nos fez rir como poucos, tinha sem dúvida um excelente risório de Santorini.

Mas para onde vai o dito músculo? Para a comissura labial. Com três faces, a primeira corresponde à pele em toda a sua extensão. A segunda é profunda e insere-se nos músculos da face. A terceira vai até à parte cutânea do pescoço.

Inervado pelo nervo facial, a sua acção destina-se a fazer andar para trás a comissura labial. Quando os dois músculos homólogos se contraem juntos, o diâmetro transversal da boca aumenta, o que permite o sorriso.

O acto de sorrir (de rir) é então, imagine-se, exclusivamente humano, já que o risório é um músculo específico do Homem. Ou seja, a acção do humor, da necessidade humana do riso, como emoção única da nossa espécie, criou e é criada por esse pequeno músculo das nossas comissuras labiais.

Fácil é perceber que os outros grandes primatas não podem, nem sabem, e nem sabem para que é que serve o dito músculo. Vejam-nos no Jardim Zoológico e logo perceberão. Mostram os dentes quando abrem a boca e a expressão é, a mor das vezes, horrorosamente explícita (“cuidado que te mordo”).

A reflexão que deixo é pois da ordem seguinte. Rir não é só “o melhor remédio” como é também transformação anatómica dos músculos da face, para que o Homem, e só ele, possa rir, sorrir. Sorrir como no poema de Mário Cesariny. Para dizer ao “gerente/este leite está azedo”. Para que ao sair da pastelaria “cá fora rir de tudo”…

Para outros primatas, abrir a boca é convocação puramente agressiva. Para nós humanos e, muito particularmente hoje, para a cena politica nacional, rir e/ou sorrir é sinal de que somos gente, que sabemos utilizar o que a natureza nos dotou. Para sorrir face a uma criança, para nos mostrarmos sorridentes quando estamos entre amigos ou entre aqueles que amamos. E também para rir com uma boa piada, uma história picante contada noite adentro.

Face à evidência anatómica, deveríamos perguntarmo-nos em quem devemos votar nas próximas presidenciais. Nos que sabem sorrir e, por aí, naturalmente gostar, ou no(s) que só sabem usar a face para o esgar, esforço inglório para fazer passar uma mensagem, que aí mesmo precisava era mesmo de uma massagem facial, ou quiçá de uma massagem na alma constrangida. Por aí, para ser capaz de se mostrar, de se dar verdadeiramente ao outro.

Sugeriria para terminar (já que o dito músculo sendo só nosso, humano, falta com alguma frequência) que Santorini fosse convocado, se ainda se contasse entre os vivos, para aquilatar das potencialidades de riso, de sorriso e do humor dos actuais candidatos à Presidência da República.

E já que um outro, um Grande do pensamento, Sigmund Freud, afirmou que o humor é uma das provas mais seguras do equilíbrio emocional, vejam também por aí quem realmente querem em Belém. Um esgar (quase sempre obrigatoriamente sisudo) ou um sorriso. Uma alegria a que nos possamos identificar neste momento bisonho da História Lusitana.

NEM SE ESTRANHA NEM SE ENTRANHA

As declarações de Manuel Alegre a Maria Flor Pedroso, na Antena Um, provocaram um sem número de respostas na comunicação social. Quanto a nós, a mais relevante foi a de Carlos Magno. Estou tanto mais à vontade para o dizer, quanto com Magno me “encontro” semanalmente no programa “Alma Nostra” onde, muitas e muitas vezes, já publicamente discordámos. Em questões bem mais sérias, complexas.

Porém, para o agora e hoje, Carlos Magno criticou Alegre na sua quase hiperbólica entrevista, no dia 15 de Dezembro, às 12 horas, isto é, bem antes do resultado das sondagens, entretanto dadas a conhecer pelo “Expresso”. Dessa crítica enfatizo:

- Alegre “inchado pelas sondagens”. No espelho (um imaginário psicanalítico), o espelho travestiu-se em feira de espelhos e a imagem deformada sondou o candidato Manuel pelo seu lado mais alegre. Embora, como Freud afirma, só o real nos pode trazer a verdadeira satisfação.
- Carlos Magno dixit de novo. Sobre Alegre outra vez. Este teria “um Ego maior do que a sua própria ideia de Pátria”. Psicanaliticamente seria possível traduzir a leitura jornalística como uma confusão típica, mas complexa entre um Ideal do Eu (a Pátria) e o Eu Ideal (o Próprio).

Se Magno tiver razão, já que apenas o cito, então a Pátria Camoniana é uma vez mais o lugar do Espelho. Desta vez o da Branca de Neve, melhor, o que aparece no filme Branca de Neve e na respectiva história. A pergunta era a seguinte: “Espelho meu/há alguém mais bonita do que eu?” O que se pode traduzir para “quase” todas as virtudes, camoniana ou não.
- Carlos Magno por uma última vez. Enquanto Maria Flor Pedroso ia cuidadosa e gentilmente pondo questões, Alegre responderia mais ou menos o seguinte. Não estou aqui a ser interrogado como se fosse na Policia…,. Ou seja, e falando uma vez mais a partir da observação psicanalítica, se o Ideal do Eu obriga o Eu Ideal a ser maior do que ele, desvaloriza e ridiculariza o Super-Eu. Já que este, sendo e contendo a instância psíquica onde se localiza o conceito de autoridade (a Policia) é utilizado tão só como contra-argumento defensivo, mas não persuasivo. Efeito/sintoma do candidato a Belém, que ainda confunde os tempos em que foi interrogado pela Policia (pela PIDE salazarista) e os de hoje. Mas como também eu lá “malhei com os ossos” duas vezes, estou à vontade, a partir do comentário de Magno, para afirmar que a “lógica” da resposta só surpreende quem não quer ver o excesso de memória do passado, em Alegre.

Porém, “apanhado” pelas sondagens do passado fim-de-semana, Alegre já nem sequer consegue fazer ecoar a proposta pessoana para a publicidade à Coca-Cola em Portugal. Com Soares claramente à sua frente, o foguetório de acusações contra as sondagens já nem se estranha e muito menos se entranham. Ou seja, já não colam.

Lamento profundamente que assim seja, já que o poeta Alegre merece muito mais. O que ajudou a aprovar o famoso orçamento do queijo limiano terá sido sempre assim. Nós é que não o sabíamos.

SINTOMAS DE INDIVIDUAÇÃO NA E DA METRÓPOLE*

A minha posição perante a cultura contemporânea (na qual obviamente se inclui o tema deste colóquio sobre o urbanismo e a pós-modernidade), recorda-me sempre a de Humpty Dumpty do romance de Lewis Carrol “Alice do outro lado do espelho”. Sinto-me um pouco como ele em cima de um alto muro “tão estreito que Alice se perguntava como ele podia manter o equilíbrio”, instabilidade essa que é obviamente reforçada quando nos damos conta do formato oval do personagem. Mas não é do ovo de Colombo que se trata em Humpty Dumpty, embora algumas questões que ele mesmo levanta sobre a linguagem aí se pudessem inserir, sobretudo hoje, quando verificamos a tentativa abortada de apropriação do discurso crítico por um passadismo pseudo-cientifizante que encontra a sua hipérbole nalguns radicais sociologizantes, enrolados num discurso sobre as ciências, que de ciências têm pouco, de razão crítica ainda menos e de pretensão pós-paradigmática demasiada, ainda que se não saiba muito bem do que se trata quando se fala ou se escreve ou ainda se diz a propósito.

Tal como imagino Humpty Dumpty, inscrevo a letra mais sob o sinal da vertigem, abismo quase nietzschiano que se abra ao dialogo sobre a fronteira que é o próprio muro.

Bem provavelmente excessiva pretensão, essa de estar na fronteira, tal como Humpty Dumpty no seu muro estreito, permeável e simultaneamente impermeável à articulação das diferenças.
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* Conferência apresentada no Colóquio Metropolis in Postmodernity, 12 de Dezembro, 2003
Esses dois lugares do muro, que designaria por simplificação de modernidade e pós-modernidade, não me inclinam para um ou outro lado mas, na complexa procura do equilíbrio apenas me permitem traduzir, quiçá interpretar. Uma óbvia inferência é que este equilíbrio, sempre incerto me impõe, para a sua difícil manutenção, numa ordem Wittegnistiana, em o que deve ser calado fica, psicanaliticamente falando, na ordem de um não dito, ainda que este operacionalize paradoxalmente a procura do sentido.

Porém, no muro, instável e vertiginoso, Humpty Dumpty dialoga com Alice sobre as palavras, sobre o uso das palavras. Enquanto que para Alice a questão é a da demanda da polissemia do sentido, para Dumpty o problema é quem manda, ou seja, saber quem manda. De outra forma, e isso é o ponto essencial, o que emerge é o questionamento do poder e a apropriação da linguagem.

Questão curiosa esta, nos dias de hoje, em que a posição depressiva (ou seja, psicanaliticamente integrativa) do moderno, fundado é consabido na transformação industrial, pelo capital industrial e pela sociedade de consumo et por cause numa ideia do mundo centrada sobre o sujeito desejante (o que é capaz de produzir riqueza e obra), cede o seu passo à atomização esquizo-paranoide (psicanaliticante dispersiva), e em que, o fim das vanguardas, a fragmentação dos grupos, a “atomização da crítica”, parecem impor uma ordem do silêncio sobre o outro lado do muro, senão mesmo o silêncio puro e duro, ainda que como todos sabemos, haja mais coisas do que as que se supõem serem vistas por todos.

Entre estas, sublinharia desde logo o efeito da globalização sobre o planeta tal como o conhecemos, efeito esse que, é consabido, ultrapassa pela sua lógica aqueles que pela direita ou pela esquerda esperneiam na contemporaneidade, produzindo um efeito de paródia, a que Kiekegörd responderia convocando o real como a mais dura das categorias e Freud, em 1911, solicitando a escuta do principio da realidade, já que o principio da prazer apenas pode fornecer pela ilusão da fantasia, aquilo que a realidade pode, pelo menos em parte, conceder. Com sofrimento é certo, penosamente é sabido, mas essa é a condição irredutível do humano, falha gloriosa a que convém não escapar.

É portanto face à realidade e ao seu principio, que a questão urbana se coloca; num lugar, ou melhor no lugar mais nobre, já que sobre ele se convoca o olhar do sujeito cívico-o que anda, vive e ama no âmago urbano.

Não discutiria, pelo menos para já, a dessincronização simbólica da cidade como centro dos contextos culturais, seja pelo poder dos media, pela generalização da comunicação, pelas novas interacções relacionais resultantes da sociedade centrada no lar e no indivíduo, assente nas novas Polis (A Telepolis, a Cosmopolis ou a Tecnopolis). Faria apenas um apontamento de margem, tal como Dumpty, à intersecção entre o narcisismo emergente e a Ágora possível, pela globalização das culturas e, porque não dizê-lo do próprio espaço e tempo. O que provém destas redes, ditas virtuais, interroga obrigatoriamente o sentido tradicional da Polis, enquanto território delimitado, visível e secante nas suas produções ao que dela se esperava, nos edifícios, nas ruas, nas Universidades, etc.. A recombinação das matrizes, resultantes da invisibilidade física, empurra o sujeito para um lugar da dissolução simbólica do urbano, enquanto diversidade cultural.

Ora é justamente esta pauperização do simbólico e da sua ordem, que importa discutir, já que o sintoma maior do urbano na pós-modernidade. assenta justamente aí, ou seja, na sua alienação ao jogo de imagens a que a Polis de hoje se parece condenar. A convocação que proponho, resulta obviamente de um enfoque maioritariamente psicanalitico, embora longe de nele se esgotar. É que a questão do real, do simbólico e do imaginário, para parafrasear Lacan, encontra-se em todos os limites da produção cultural a que o humano se auto-propõe, em primeiro lugar, os lugares. Lugares da morte (os cemitérios), os lugares da vida, as cidades, sempre condenadas a uma outra-cena, como é visível nas toponímias que nomeiam uns e outros.

Mas o que se espera do espaço urbano, é que ele se mantenha como epicentro da ordem simbólica, ou seja, aquela que desaliena o sujeito do olhar do outro, pela acessibilidade ao saber que deconstroi a aproximação/distância face ao outro. O urbano é da ordem da morte da coisa, monumentalidade sacrificial ao simbólico, visível e invisível na construção como um mais além. Veja-se por exemplo as recentes declarações de Álvaro Siza, a propósito das Torres de Alcântara, aonde a Ponte mata, para fazer renascer o espaço arquitectónico.

Embora tal escuta não seja explícita, no dizer que se faz sobre o moderno, é aí mesmo que o sujeito se implica na ordem simbólica que face a ele existe e que também insiste e pré-existe. A emergente conflitual, já que a resultante é sempre conflitiva, expressava-se e expressa-se ainda na arquitectura, aonde inexoravelmente se interligam os registos simbólicos do mundo, da economia à política, às artes, ao urbano. A arquitectura, provavelmente a filha mais exemplar da cultura de tantas eras, articulava e configurava na modernidade, o espaço urbano e a nossa relação com aquele. Por outras palavras, entre o real (e insuportabilidade da necessidade de abrigo e alimento), o imaginário (lugar aonde a imagem do mundo e do outro se cruzam na alienação do eu que olha e é olhado e por aí reconhecido), e o simbólico (caesura que introduz o corte e a costura entre o Eu e o Outro), os limites formais e constitutivos do moderno e sua expressão arquitectónica, criaram um contexto suficientemente padronizado, em que o olhar sobre a cidade não se sustentava exclusivamente no vertex restrito e mercadológico.

Não me refiro obviamente ao mercado, ou à sua expressão societária, mas à reificação da mercadoria, ou seja do real, como deslize maior que infiltra no pós-moderno a cidade, enquanto sintoma de uma asfixia da própria linguagem urbana. É que, se concebermos a relação real/simbólico/imaginário como uma corrente trifásica, é o fusível queimado do imaginário que explicita a desertificação do urbano, progressivamente substituído pela cidade-espectáculo. Não me refiro tão só ou apenas à destruição física da Polis, ou seja o pior do pós-moderno, para o que bastaria um breve passeio dos Restauradores ao Marquês de Pombal, mas sobretudo do espaço público que ele representa ou deveria representar. É desse imaginário, fusível queimado na interligação entre o real e o simbólico, que encontramos hoje restos metonímicos, onde o sujeito urbano outrora se metaforizava. Obviamente que a deslocalização da relação especular Eu-Outro pela revolução tecnológica das comunicações, que por si mesma retirou o urbano da sua localização social, fragiliza a entidade física da metrópole.

Porém esta nova alteridade relacional sujeito-outro, sujeito-mundo, se em si mesma é subvertora da condição urbana, pela instântaniedade da interacção electrónica, não pode nem deve ser tomada como justificação mortalista para as questões que as cidades de hoje levantam.

Sei perfeitamente que esta proposta discursiva, se afasta em larga medida daquilo que Lyotard de um lado e Aldo Rossi do outro, designavam por pós-moderno, o que não é de admirar já que é de um outro ângulo que proponho a textualidade crítica.

Quanto a nós, a questão central é a transformação urbana enquanto relação libidinal com a pulsão escópica (pulsão do olhar), num progressivo deslize para a coisa. Ou seja, uma inversão da transformação do imaginário em simbólico, pela deglutição daquele pelo real.

Retomaria aqui o discurso de Jameson (1997) sobre o Hotel Bonaventure em Los Angeles. “O que pretende salientar”, afirma Jameson, “é a forma pela qual esse revestimento de vidro repele a cidade lá para fora, uma repulsa cuja analogia se encontra nos óculos de sol espelhados. De modo similar, o revestimento de vidro dota o Bonaventure de uma certa dissociação peculiar e deslocada da sua vizinhança; não se trata sequer de um exterior, na medida em que ao olhar-se para as paredes externas, não se vê o hotel, mas imagens distorcidas de tudo o que o circunda”.

Estes óculos de sol espelhados que se limitam a reflectir as imagens de tudo o que os circunda, ou seja, imagem pela imagem, encontram o seu ponto mais alto no sintoma maior do urbanismo pós-moderno, a saber, os shoppings-center. Expressão irónica, já que ir ao centro (ao Rossio, aos Restauradores), não é concerteza o mesmo que ir aos shoppings-center, embora estes sejam, tão só, um análogo do ovo de Colombo da estética do mercado. Autênticas cápsulas espaciais criadas para sustentar o espectáculo mercantil e a sua estética imanente, os shoppings reflectem a condição autista do real que submete o imaginário e deglute o simbólico na arquitectura puramente fotográfica high-tech, embrulho letal para a regulação do sentido da vida nas cidades de hoje, ou seja, uma relação não mediatizada à mercadoria. A legitimação deslocou-se do pensamento para o produto, pois só a aquisição parece legitimar o sujeito, que por ai mesmo, passa à categoria paradoxal de sujeito adquirido.

A progressiva extinção do “flaneur”, em que o gozo do perambular pelas ruas, dá progressivamente lugar ao andar robótico pelos corredores dos shoppings, numa hipnose letárgica do devaneio, extinguido pelo real mercadológico constitui-se, a meu ver, como o sintoma maior da cidade “pós-moderna”. A apologia do simulacro do simbólico, resgatado na forma de gadget, remete-nos, queira-se ou não, para uma anomia ética e estética.

Diga-se de passagem, que um dos sintomas psicopatológicos maior do nosso tempo, a saber a toxicodependência representa no mais elevado grau a questão sindromática pós-moderna. As drogas, são na sua essência o consumo, não sendo por acaso que os toxicodependentes se chamam, nos circuitos especializados, consumidores. Curiosos consumidores da única mercadoria que não necessita de publicidade, já que ela representa na sua espectacularidade o retorno do gozo e da dor ao real, como lugar mortifero do sujeito pensante e desejante.

Mas, e agora que se aproxima a época natalícia, aonde se encontra e constitui a cidadania? Nos shoppings como monumentalidade de um real submetido a si próprio, e que por isso condensa estranhamente a Ágora, o Templo e o Mercado.


*
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Poderá parecer aos que me escutam, que afinal o estreito muro em que me auto-propus como Humpty Dumpty me levou numa inglória tentativa de equilíbrio em olhar mais para um lado que para outro. Assumo parecer que assim seja. Porém, não me basta-não basta-denunciar as imposições estilisticas e mercadológicas, pseudo-ecléticos, mas vazias de conteúdo crítico, para encontrar uma linguagem para a permanência da Polis. Ou seja, é também necessário regressar à discussão do lugar tal como ele se constituiu; a saber como somatório de factos urbanos, ligados pela história, tradição e memória de um povo, somatório esse que se constitui como ordem simbólica da tecitura cosmopolita e simultâneamente idiossincrática, já que refazendo-se como continente e conteúdo, expressão major dos seus significados.

E aí a ressonância do lugar impõe-se, como consequência entre o moderno e o pós-moderno, o que não significa, longe disso, qualquer defesa de um urbanismo regional, paródia anti-globalizante e insustentável. O que achamos possível e desejável, em primeiro lugar como cidadãos, é uma aproximação resgatada do simbólico urbano, pela assimilação do existente e do contexto histórico em que se desenvolveu, aproximação essa que viabilize uma relação aberta com o contexto, integrando por isso uma arquitectura contemporânea na história, nas tradições locais e, obviamente, também nas condicionantes ambientais e climáticas.

O respeito pela cidade e pela sua história, deve ter como epicentro o homem como usufrutuário do lugar. Qualquer discussão sobre esta matéria deve levar em conta a essência do sentido de permanência e a existência do sujeito individual, contra-ponto crítico à massificação e à perda de sentido que atravessa o urbano e a fortiori a contemporaneidade.

Porém, e ainda como Humpty Dumpty no muro, não posso deixar de me interrogar como psicanalista sobre a frase agora mesmo escrita: “a essência do sentido da permanência”. O que realmente estou em vias de escotomizar, face ao efémero que me chega também pela História? E aí, Freud revisita-me, a partir de Novembro de 1915, nesse belo e notável texto sobre a transitoriedade. Perdoem-me a longa citação, mas torna-se imperativa no aqui e agora do discurso e da escrita. Afirmava Freud: “Não há muito tempo, dei um passeio na companhia de um amigo taciturno e de um jovem-poeta, embora já-famoso; percorrendo uma paisagem estival florescente. O poeta admirava a beleza da Natu­reza ao nosso redor, mas sem se alegrar com isso. Perturbava-o o pen­samento de que toda essa beleza estivesse destinada a perecer, que acabasse por morrer no Inverno, tal como toda a beleza humana, tudo o que de belo e sublime as pessoas tivessem criado ou pudessem criar. Tudo o que ele, de outra forma, teria amado ou admirado lhe parecia perder valor devido à fatal transitoriedade a que estava votado.

Sabemos que há dois movimentos psíquicos diferentes que podem originar-se na ideia de que tudo o que é belo e perfeito tende para a decadência. Um deles conduzirá ao tédio doloroso do jovem poeta; o outro, à revolta contra factos consumados: não, é impossível que todo este esplendor da Natureza e da arte, o nosso mundo sensível e o mun­do externo se dissolvam, de facto, no nada. Seria demasiado absurdo e presumido acreditar nisso. Essa magnificência deverá poder manter­-se de qualquer modo, eximir-se a todas as influências destrutivas.

Esta exigência de eternidade só por si é claramente uma conse­quência dos nossos desejos e não o resultado de uma reivindicação realista: aquilo que é doloroso também pode ser verdadeiro. Não pu­de negar a transitoriedade generalizada, nem circunscrever o belo e o perfeito a uma excepção. Mas contestei a visão pessimista do poeta de que a transitoriedade do belo implicasse a perda do seu valor.

Pelo contrário, implica um aumento! O valor de transitoriedade corresponde a um valor de escassez no tempo. A limitação das possibi­lidades de usufruto aumenta a sua preciosidade. Considerei in­compreensível que a reflexão acerca da transitoriedade do belo nos estragasse a alegria que nos proporciona. No que toca à beleza da Na­tureza, ela ressurge no ano seguinte, após cada destruição operada pelo Inverno e, esse retorno, poderá ser descrito como eterno em rela­ção à duração da nossa vida. Da perspectiva da nossa própria vida, consideramos que a beleza do corpo e do rosto humanos desaparecem para sempre, mas esta fugacidade acrescenta-lhe um encanto re­novado. Se houver uma flor que apenas floresça durante uma única noite, a sua beleza não nos parece, por isso, menos excelente. Tão­-pouco sou capaz de concluir que a beleza e a perfeição da obra de arte e das criações intelectuais possam ser desvalorizadas devido à sua circunscrição temporal. Poderá vir a existir uma época em que os quadros e as estátuas que hoje admiramos surjam em ruínas, ou uma geração após a nossa que já não compreenda as obras dos nossos escri­tores e pensadores, ou até uma era geológica em que se extinga toda a vida animada existente na Terra; porém, o valor de tudo o que é belo e perfeito é apenas determinado pelo seu significado para a nossa vi­da emocional, não necessitando de nos sobreviver e sendo, por isso, in­dependente de uma duração temporal absoluta.”

Um pouco mais adiante, Freud, dá-se conta do seu fracasso argumentativo, face aos seus dois companheiros. “Deve ter sido a revolta contra o luto que os privou do prazer do belo”. Luto este que é de uma ordem enigmática, para parafrasear de novo o fundador da psicanálise, ou seja, porque é que nos é sempre penosa a separação dos objectos, "não desistir daqueles que se perdem, mesmo quando a sua substituíção se encontra viabilizada”.

A conversa com o poeta, afirma Freud, ocorreu no Verão anterior à 1ª. Grande Guerra Mundial. Guerra essa, para voltar a citar Freud que “nos despojou de muitas coisas que amáramos e nos mostrou a fragilidade de várias outras que tinhamos considerado duradouras”. Mas pergunta-se Freud “aqueles bens, agora perdidos, surgiram-nos realmente desvalorizados porque se revelaram tão ilusórios e frágeis”? A muitos de nós parece ser assim, mas eu penso de novo que erradamente”. (...) “Somente quando o luto estiver feito, ficará claro que a nossa grande estima pelos bens culturais não foi abalada pela sua fragilidade”.

É também esta relação entre o luto e o transitório, que se encontra subjacente a muito do discurso de hoje sobre a cidade. Ele é frequentemente da ordem da revolta contra o luto, mas também muitas vezes sustentáculo para a sua elaboração ou mesmo para a sua per-elaboração. Diga-se, que é esse o lugar em que me auto-proponho.

Sei perfeitamente também que Humpty Dumpty estava confiante de que se caisse do seu muro estreito, os soldados do Rei viriam ampará-lo na sua queda, coisa sobre a qual não posso ter a mesma certeza do famoso personagem de Carrol.

Mas sei também que os jogos de linguagem de Lewis Carrol, se fizeram essencialmente a partir das cartas de baralho, ou seja, seres sem espessura e, simultaneamente, figuras espelhadas e invertidas. E seria por aí mesmo que pretenderia terminar esta breve comunicação. O que me atormenta mais no pós-moderno, é o retorno ao sem espessura inerente a um real metomímíco, retorno esse que empurra o sujeito para uma àrea bi-dimensional entre ele e a mercadoria, como se um fosse impossível de conceber sem a outra. E por aí, os acontecimentos, a deriva urbana, não são mais procurados em profundidade, mas tão só promotores de um turismo hilariante e de consumo. Para retornar a Freud, encontrariamos aqui um transitório condenado ao breve.

A questão é então uma vez mais do espelho invertido, como nas figuras do baralho de cartas. Quem sou eu? O que se apropria do gadget ou aquele que por ele é apropriado?

Resposta a que só a razão crítica, e o retorno dos intelectuais à cena pública pode dar corpo. Mas não, à velha maneira messiânica figurada ou caricaturizada conforme se queira por Jean-Paul Sartre, enquanto figurino da relação antinómica entre os intelectuais e o Poder. Suponho que Atenas, a ex-libris por excelência da Polis, nos tem, uma vez mais muito que ensinar por aí. É que, sem cair do muro e sem a ilusão de ser apoiado pelos soldados do Rei, pudemos de alguma forma retornar à intervenção cívico-intelectual ateniense, enquanto dialogantes com o Poder, diálogo sem o qual, a questão de Humpty Dumpty sobre a apropriação do poder como apropriação da linguagem, fica irredutivelmente sem sentido.

Se até a indústria descobriu como transformar o esgoto em estrume, mal vai o mundo, se não somos capazes de encontrar caminhos novos face à pastiche do caos.

Bibliografia
Amaral Dias , C (1995) Ascensão e Queda dos Toxicoterapeutas, E. Fenda, Lisboa
Carrol, Lewis (2000) Alice do Outro Lado do Espelho, E. Relógio D’Água, Lisboa
Freud, S. (1915) Sobre a Transitoriedade - Ed. S.F. Br. Obr. Compl. Vol. XIV, pag. 345-35 D
Jameson, F. (1997) Pós-modernismo. A Lógica Cultural do Capitalismo Tardio. São Paulo. Ed. Ática